Quem nunca viu alguém que, apanhado na curva, em vez de travar a fundo, acelera rumo ao precipício? Queda inevitável? Os burlões pensam que não. Elizabeth Holmes, uma empreendedora que prometia revolucionar o mundo das análises ao sangue, bem pode ser uma das fraudes mais extraordinárias dos novos tempos. A premissa da sua empresa também era incrível: no seu aparelho miraculoso, bastava uma gota de sangue para se obter, quase de imediato, um diagnóstico acerca de várias doenças.  

A proposta era tão irresistível que a jovem Elizabeth se tornou rapidamente bilionária, conquistando os favores de investidores e figuras públicas, e a confiança e fé dos seus funcionários. A empresa de biotecnologia Theranos subiu aos céus como um foguetão espacial. Depois, desceu aos infernos, numa queda que podemos acompanhar através dos documentários The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley (2019) e Valley of Hype: The Culture that Built Elizabeth Holmes (2021). E a grande pergunta que se coloca nestes dois filmes também tem a ver connosco: como é que foi possível tamanha subida vertiginosa, só com base numa mão cheia de nada?

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Uma empreendedora à imagem de Steve Jobs

Mais do que apresentar e condenar uma vilã, estes documentários questionam toda a nossa sociedade, tão atreita a acreditar nos contos do vigário. Elizabeth Holmes apresentou-se como uma empresária que tinha a missão de mudar o mundo na área da saúde. A Theranos, com o seu aparelho inovador, propunha dar preciosas informações médicas às pessoas, quando elas quisessem ou necessitassem, de modo a não terem de se despedir demasiado cedo da vida. Adeus, agulhas grossas e tubos de ensaio. Uma picadinha, umas pingas de sangue, e conseguiam-se resultados para todos os tipos de testes, assim diagnosticando inúmeras doenças numa fase precoce. Quem não assinaria por baixo, sem ler as letras miudinhas?

Cartaz do documentário  sobre a empresa de Elizabeth Holmes, a Theranos

Elizabeth Holmes parecia mesmo ter inventado uma máquina mágica. E, em redor de si, construiu uma narrativa igualmente apetecível, da rapariga de 19 anos que largara os estudos para ir revolucionar o setor das análises laboratoriais. Ela era a empresária de sucesso que liderara a Theranos até uma avaliação de 9 mil milhões de dólares! Uma executiva maravilhosa, disruptiva, inspiradora… e admiradora de Steve Jobs, a quem até copiava o guarda-roupa sempre igual (para não ter de perder tempo a pensar nisso).

No documentário The Inventor, as entrevistas a antigos colaboradores da Theranos, bem como a jornalistas que lidaram com Elizabeth, revelam como se foi criando um mito à volta da empresária que parecia nunca pestanejar. Elizabeth, a mulher do olhar intenso, capaz de manter um grande secretismo sobre o seu projeto, dando respostas vagas ou proferindo generalidades sobre o objetivo da companhia: a hipótese de uma medicina personalizada, de se passar a ter um laboratório completo numa “caixinha”, de se obter um mapeamento quase contínuo do sangue de cada pessoa. Um aparelho complexo? Sim, sem dúvida, mas um projeto que os cientistas envolvidos consideravam alcançável.

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A força de uma boa narrativa

A par dessa idolatria pela mulher-empresária, vai surgindo à frente do espectador o retrato de alguém que, à custa da sua própria convicção, acredita poder funcionar sem limites. E surge nova pergunta: onde estava o equilíbrio entre a visão do futuro e a proximidade da realidade? No caso, tanto fazia. Foi sem falar concretamente sobre o que estava realmente alcançado e sobre o que ainda faltava fazer que Elizabeth Holmes conseguiu, através do seu charme e da sua “história de sucesso”, convencer investidores privados a avançar com centenas de milhões de dólares. Dinheiro entregue sem que nunca se tivesse olhado para demonstrações financeiras devidamente auditadas. O prometido seria demasiado bom para ser verdade? Talvez demasiado bom para não se querer que fosse mentira…

Por isso, tantos confiaram mais no instinto do que nos factos, cedendo ao poder emocional de uma boa narrativa. É assustadora a quantidade de gente de renome que via um génio em Elizabeth Holmes. E, contudo, que tinham esses idólatras em comum? Serem, essencialmente, homens velhos, com poder junto do governo, do departamento de defesa, das organizações militares, dos organismos de controle do setor da saúde, mas que não tinham nenhum conhecimento científico. No fundo, homens velhos que se deixaram enfeitiçar pela jovem empreendedora.

Da visão futurista à paranoia profunda

A todos, a Theranos vendia o sonho de uma máquina incrível que só existia em protótipo. Uma máquina que, quando teve de ser posta à prova, não funcionava, porque o marketing de se criar a tal caixinha mágica, quase portátil, sobrepunha-se até às leis da termodinâmica ou às dimensões do hardware. Aos poucos, alguns funcionários foram dizendo que o projeto talvez não fosse concretizável. E é então que a Theranos se transforma num regime tirânico, com pessoas afastadas por não acreditarem na visão ou por apontarem algo que estava mal. A escalada da pressão e paranoia passa por ameaças de despedimento e processos, vidros à prova de bala, seguranças privados, controle de entradas e saídas na empresa, de emails pessoais, dos computadores…

Mesmo com o navio a afundar, Holmes continuava a gizar esquemas de fachada para angariar novos investimentos. O escalar do negócio fez-se, também, pela exploração das emoções humanas: que tal dar a um familiar um cartão-oferta de análises que, se calhar, pode vir a salvar-lhe a vida? O que era uma visão empresarial, de repente, tornara-se uma gigantesca fraude, que ameaçava perpetuar-se, não fosse ter aparecido um artigo na imprensa que, à laia de despertador, evidenciava como algumas empresas unicórnio de Silicon Valley podiam existir durante anos e anos, à custa de investimento privado, sem terem de prestar contas públicas. E foi então que Elizabeth Holmes deu o tal passo em frente, enfrentando tudo e todos, acreditando cegamente em tudo aquilo que estava a prometer.

No fundo, se acreditarmos muito numa mentira, talvez ela se torne mesmo a nossa verdade.

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